Há quem nunca tenha sentido o andar do mês com um golpe seco na garganta. Há quem nunca tenha sentido que o mês já começa vazio, ou que o amanhã traz a incerteza da comida no prato. Até há quem não saiba o que é ter necessidades, ter falta disto e daquilo ou de tudo. E a verdade é que o desespero existe e que a incerteza, a insegurança e o medo matam, aos poucos e poucos, sem ninguém ver. Somos felizes, os que temos providência assegurada. Por isso é que o Natal deveria ser todos os dias, como se diz.
Mas não é. Sabemos isso. Ajudar os outros é algo que não resolve nada, ou quase nada. Mata a fome de um dia, talvez de uma semana, sutura mas não trata feridas, argumento que serve de pretexto para que nada se faça, e que, ao invés, se advogue uma mudança das condições de classe, uma revolução, uma alteração das políticas discriminatórias, a diminuição do desemprego, a igualdade, a sociedade que, sabemos, todos merecem e tem obrigação de ser mais justa. Sabemos isso. Mas enquanto assim não for, não podemos ignorar o presente.
Muitas vezes, vivemos na nossa cápsula, onde o mundo também tem turbilhões, e não nos damos conta do brilho no olhar de quem recebe algo, seja um sorriso, ou um gesto simples e providencial. E isto não é caridade, mas muito claramente partilha. Eu tenho a mais. Toma. O ser não é posto no lugar da inferioridade, a postura hipócrita destinada a aliviar a consciência, mas no da igualdade, o lugar que ocupa aquele que veste a pele do outro e sabe o que ele sente, o que ele sofre.
Consequentemente, algumas pessoas não sabem dar, porque o melhor da doação é essa compreensão fundamental de que as necessidades não são apanágio só dos pobres, dos desorientados, dos gastadores, dos alcoolizados, dos marginais e sem-abrigo, mas que as necessidades batem ciclicamente a todas as portas, mesmo quando não são materiais mas de outra origem qualquer. Todos podemos vir a precisar desse aconchego de não nos sabermos sozinhos com a responsabilidade da nossa e de outras vidas. Dos nossos problemas e dos de outrem. Logo, a caridade não existe. O calor humano sim.
Estas reflexões num editorial tardio, dizem muito da época que atravessamos. É Natal e essa é a melhor altura para olhar para o outro e fazer alguma coisa, porque é quando há sinergias, vontades acrescidas e gente compassiva com gosto de distribuir sorrisos. Por que não acontece isso o ano inteiro? Não sabemos bem porquê. Sabemos é que agora é o momento. A exemplo de uma mãe que, há mais de dois mil anos, teve o seu filho no desamparo de uma gruta, com o nó da angústia no olhar, e recebeu calor humano e simpatia, nesta quadra não devia haver uma só mãe angustiada com o que vai pôr amanhã no prato dos seus filhos. Só e apenas porque a amizade universal existe. Devia ser possível senti-la intrínseca e verdadeiramente…
A amizade duplica as alegrias e divide as tristezas.
Francis Bacon
Ana Isabel Falé